A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que validou a partilha de bens em inventário sem a necessidade de quitação prévia do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), foi amplamente celebrada como um avanço na celeridade processual.
Para muitas famílias, a medida de fato representa o fim de uma longa e angustiante espera, permitindo que o processo sucessório seja concluído de forma mais rápida quando há consenso entre os herdeiros. Contudo, por trás dessa aparente simplificação, esconde-se um risco estratégico que pode afetar gravemente a espinha dorsal de muitas empresas familiares: a holding.
A validação da constitucionalidade do artigo 659, § 2º, do Código de Processo Civil, embora bem-intencionada, altera fundamentalmente a dinâmica de cobrança do tributo. Ao desvincular a homologação da partilha da comprovação do pagamento, a decisão transfere a responsabilidade da cobrança do âmbito do processo de inventário para uma execução fiscal autônoma. E é justamente nessa transferência que reside o perigo. Se antes a quitação do imposto era uma condição para que os herdeiros tomassem posse efetiva dos bens, agora eles recebem o título de propriedade primeiro e a conta do Fisco chega depois. Para uma holding, essa inversão da ordem pode significar a judicialização da sua própria estrutura de capital.
Este artigo se aprofunda nas consequências não ditas dessa decisão, explorando como a busca por agilidade processual pode, paradoxalmente, introduzir um elemento de instabilidade e risco financeiro diretamente no coração das empresas familiares estruturadas via holdings.
Para compreender a dimensão da mudança, é preciso recordar como o sistema funcionava. Tradicionalmente, o processo de inventário, mesmo o consensual (realizado via arrolamento sumário), ficava condicionado à manifestação da Fazenda Pública estadual. O juiz só proferia a sentença de partilha e expedia o respectivo formal após a comprovação de que o ITCMD havia sido integralmente pago. Essa exigência, embora inegavelmente burocrática e, por vezes, morosa, criava uma sequência lógica e segura: primeiro, cumpriam-se as obrigações fiscais; depois, transferia-se a propriedade.
Essa trava funcionava como uma espécie de garantia para todas as partes. O Estado tinha a segurança da arrecadação. E a própria empresa familiar, estruturada como holding, ficava protegida. Os herdeiros só assumiam formalmente suas cotas sociais — e, com elas, o poder de voto e de decisão — após resolverem a pendência tributária. A sucessão empresarial, portanto, ocorria sobre uma base financeira já equalizada. O custo da transmissão era acertado antes que os novos sócios pudessem, por exemplo, deliberar sobre a venda de ativos ou a distribuição de lucros que poderiam ser necessários para quitar o próprio imposto.
Com a decisão do STF, essa engrenagem foi desmontada. A prioridade agora é a celeridade do ato judicial que formaliza o acordo entre os herdeiros. O juiz homologa a partilha, expede o formal e comunica a Fazenda. A partir daí, o Fisco deve iniciar seu próprio procedimento para cobrar o tributo. Se os herdeiros, agora formalmente donos das cotas da holding, não efetuarem o pagamento no prazo administrativo, o Estado inscreverá o débito em dívida ativa e ajuizará uma execução fiscal.
É aqui que o cenário se complica dramaticamente. Em uma execução fiscal, o objetivo do Estado é encontrar bens do devedor para garantir e quitar a dívida. E qual é o bem mais direto, líquido e evidente que os herdeiros possuem nesse contexto? As próprias cotas da holding que acabaram de receber. A nova regra, portanto, cria um caminho direto e desimpedido para que o Fisco peça a penhora das cotas sociais da empresa familiar para garantir o pagamento de um tributo que é de responsabilidade pessoal dos herdeiros.
Uma penhora de cotas sociais é um evento extremamente danoso para qualquer empresa. Ela afeta a capacidade de obter crédito, gera instabilidade na governança, pode inviabilizar operações de fusão e aquisição e, em última instância, pode levar ao leilão judicial dessas cotas para que a dívida tributária seja paga, permitindo a entrada de terceiros estranhos na sociedade. O que era para ser uma solução de celeridade para a família pode se transformar em uma crise corporativa.
O risco não é apenas financeiro. A transferência de titularidade das cotas antes da quitação do imposto gera um vácuo de responsabilidade que pode desestabilizar a governança. Herdeiros podem passar a exercer direitos de voto e participar de deliberações cruciais enquanto a dívida fiscal correspondente à sua própria herança ainda está em aberto. Isso pode levar a situações em que um novo sócio vote pela distribuição de dividendos que deveriam, por prudência, ser provisionados para o pagamento do imposto.
Esse novo cenário torna os acordos de sócios ainda mais indispensáveis e exige que eles sejam redigidos com um novo nível de sofisticação. Não basta mais apenas regular o direito de preferência ou as regras para venda de cotas. Torna-se imperativo incluir cláusulas que enderecem diretamente essa nova realidade.
Por exemplo, um acordo de sócios robusto pode prever a suspensão temporária do direito de voto do herdeiro até que ele comprove a quitação do ITCMD. Outra possibilidade é criar, no próprio acordo, um mecanismo de mútuo ou adiantamento de lucros pela holding para o pagamento do imposto, vinculando o herdeiro e garantindo que a obrigação seja cumprida sem expor o capital social da empresa a uma futura execução fiscal. A ausência desses mecanismos de proteção contratual deixa a holding vulnerável.
A decisão do STF, ao focar na eficiência do Judiciário, inadvertidamente criou uma nova e complexa camada de risco para o planejamento patrimonial e sucessório de famílias empresárias. A agilidade no inventário é, sem dúvida, um benefício, mas não pode ser celebrada sem a devida compreensão de suas consequências colaterais. Para estruturas societárias como as holdings, a consequência é a exposição direta do seu capital a dívidas tributárias de natureza pessoal de seus sócios.
A proteção contra esse novo risco não virá dos tribunais, mas sim da prevenção e do planejamento. Mais do que nunca, a elaboração de acordos de sócios detalhados e a estruturação de regras claras de governança para o período de transição sucessória deixam de ser uma recomendação e passam a ser uma necessidade vital. Ignorar essa nova realidade é deixar a porta aberta para que a cobrança de um imposto sucessório se transforme em uma intervenção judicial na própria empresa, ameaçando a continuidade do legado familiar.