As notícias sobre mortes e internações graves causadas pelo consumo de bebidas adulteradas com metanol acenderam um alerta de saúde pública em todo o país. O que à primeira vista parece um problema restrito ao comércio clandestino e a produtos de baixíssimo custo, na verdade, expõe uma vulnerabilidade oculta no mundo corporativo. A mesma substância letal, presente em um lote de cachaça de alambique ou em uma garrafa de gim falsificada, pode facilmente encontrar seu caminho para dentro de uma empresa através de um fornecedor não verificado.
A partir do momento em que essa bebida é servida — seja em uma grande celebração, em um brinde para fechar um negócio, ou como um simples gesto de cortesia na sala de reuniões — a empresa anfitriã pode ser chamada a responder por todas as consequências. A questão jurídica que se impõe é complexa e severa: a ausência da intenção de envenenar não elimina a responsabilidade por ter, ainda que por negligência, servido o veneno. Este artigo aprofunda as implicações civis e criminais dessa responsabilidade, que muitos gestores ainda desconhecem.
O senso comum pode levar um administrador a acreditar que, por não vender bebidas, mas apenas oferecê-las gratuitamente, sua empresa estaria isenta de responsabilidade. Essa é uma percepção juridicamente equivocada e perigosa. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu artigo 3º, define fornecedor como toda pessoa física ou jurídica que desenvolve atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
A interpretação da justiça em casos análogos é a de que, ao oferecer um produto para consumo em seu ambiente de negócios, a empresa se equipara a um fornecedor. Ela passa a integrar a cadeia de consumo, mesmo que de forma eventual e não remunerada. A consequência direta dessa equiparação é a aplicação da responsabilidade civil objetiva, prevista no artigo 12 do CDC. Isso significa que, em caso de dano causado por um produto defeituoso (como uma bebida contaminada), a empresa tem o dever de indenizar, independentemente da comprovação de culpa. Para a vítima, basta provar o dano e o nexo de causalidade — ou seja, que consumiu o produto contaminado naquele local. A cortesia, aos olhos da lei, se converte em um ato de fornecimento com todas as suas obrigações.

Se a responsabilidade de indenizar já representa um impacto financeiro e reputacional significativo, a esfera criminal traz consequências ainda mais devastadoras. A compra de produtos de um fornecedor informal, sem nota fiscal e por um preço muito abaixo do mercado, pode ser interpretada não como uma simples falta de cuidado, mas como um indício de que o comprador assumiu o risco de um resultado danoso. É aqui que entra a figura do dolo eventual.
Diferente do dolo direto (quando há a intenção de cometer o crime), o dolo eventual ocorre quando o agente, mesmo sem querer diretamente o resultado, prevê que ele é possível, aceita esse risco e demonstra indiferença quanto à sua ocorrência. A analogia clássica é a do motorista que participa de um "racha": ele não quer matar um pedestre, mas sabe que isso pode acontecer e, mesmo assim, acelera. No contexto corporativo, o gestor que, para economizar, opta por um fornecedor notoriamente irregular, pode ser visto como alguém que previu a possibilidade de o produto estar adulterado e ser nocivo, mas foi indiferente a esse risco em prol da vantagem financeira. Nessas condições, em caso de morte de um consumidor, a acusação pode deixar de ser de homicídio culposo (sem intenção) para se tornar homicídio com dolo eventual, cujas penas são drasticamente maiores.
• Fornecedor verificado
• Nota fiscal
• Segurança jurídica
• Fornecedor clandestino
• Sem nota
• Responsabilidade civil (objetiva) ou risco criminal (dolo eventual)

A única defesa robusta contra esses riscos não é construída nos tribunais, mas nos processos internos da empresa. A crise do metanol ensina que a gestão da cadeia de suprimentos é, também, uma gestão de risco jurídico. A economia ilusória obtida com a informalidade se desfaz diante do primeiro incidente, gerando um passivo que pode comprometer a continuidade do negócio.
A implementação de uma política rigorosa de due diligence e homologação de fornecedores é, portanto, uma medida de proteção essencial. Isso envolve:
Exigir e analisar a documentação da empresa fornecedora, incluindo contrato social, alvarás de funcionamento e, especialmente para alimentos e bebidas, licenças sanitárias.
Tratar a emissão de nota fiscal como uma condição inegociável. O documento não é apenas uma obrigação tributária, mas a principal prova da origem lícita do produto e o instrumento que permite a rastreabilidade e uma eventual ação de regresso contra o fabricante ou distribuidor.
Desconfiar de ofertas com valores muito abaixo da média de mercado, pois este é um dos principais indicadores de produtos de origem duvidosa, falsificados ou adulterados.
Treinar as equipes responsáveis pelas compras para que atuem como uma primeira linha de defesa, identificando esses sinais de alerta, é um investimento de valor inestimável.

A hospitalidade é um pilar das boas relações comerciais, mas não pode ser exercida com ingenuidade. Os casos de contaminação por metanol são um lembrete contundente de que, no ambiente corporativo, não existem gestos isentos de responsabilidade. Cada produto oferecido, por mais trivial que pareça, carrega a chancela da empresa e, com ela, todo o peso da lei.
A proteção contra um cenário tão devastador não reside em desculpas ou na alegação de boa-fé, mas na implementação de processos de controle robustos e na criação de uma cultura de diligência. A verdadeira medida da responsabilidade de um gestor se revela na sua capacidade de antecipar riscos e de entender que a segurança jurídica da empresa pode estar, literalmente, no copo que ela oferece a um convidado.
