O acordo de sócios costuma ser apresentado como um instrumento de prevenção de litígios e alinhamento estratégico entre os membros de uma sociedade. Essa descrição, embora correta em parte, esconde uma armadilha: a falsa sensação de segurança que um documento mal estruturado pode oferecer. Na prática, acordos redigidos com base em modelos genéricos ou replicados de outras realidades empresariais não apenas falham em prevenir conflitos, como muitas vezes se tornam o epicentro deles.
Abaixo, exploramos situações reais e recorrentes que mostram como cláusulas comuns — muitas vezes vistas como “protocolares” — podem se tornar pontos de ruptura, especialmente em contextos de sucessão, desequilíbrio financeiro ou alteração na composição societária.
É cada vez mais comum que empresários optem pela constituição de holdings patrimoniais ou operacionais com divisão antecipada de cotas entre herdeiros. Essa decisão, geralmente motivada por planejamentos sucessórios, costuma ser acompanhada de um acordo de sócios para disciplinar as regras de governança do grupo. No entanto, o que se vê na prática é a criação de estruturas que não respeitam a assimetria de papéis entre sócios controladores e sócios herdeiros.
Sem cláusulas que garantam poderes de veto, mecanismos de proteção ao fundador ou estrutura de ações preferenciais com voto qualificado, o detentor da visão estratégica pode ser facilmente superado por coalizões entre cotistas sem experiência operacional. A ausência de um regime de voto diferenciado — previsto, por exemplo, nos artigos 1.053 e 1.072 do Código Civil e reforçado pela Lei das Sociedades por Ações em estruturas análogas — deixa o fundador em posição de fragilidade dentro da própria holding.
Casos como esse já são comuns em disputas familiares julgadas nos tribunais estaduais, especialmente em setores como agronegócio e logística, onde a transmissão precoce de poder sem critérios objetivos resultou em destituições e dissoluções judiciais parciais da sociedade.
Outro erro recorrente está na estipulação de cláusulas de recompra de quotas ou ações com base em valores fixos ou fórmulas pouco dinâmicas. Muitos acordos preveem, por exemplo, que a saída de um sócio minoritário ocorrerá com base em valor patrimonial contábil ou valor de mercado definido por parâmetro desatualizado. Isso ignora a realidade de que empresas, especialmente em estágios iniciais ou em setores de alto crescimento, podem sofrer variações significativas de valuation em períodos curtos.
A jurisprudência atual tem sido firme em validar cláusulas contratuais de recompra abaixo do valor de mercado, desde que pactuadas entre partes capacitadas e sem vícios de consentimento (STJ, REsp 1.850.598/SP, julgado em 2021). Ou seja, a Justiça não corrige cláusulas mal negociadas — e isso torna a falha estratégica ainda mais grave. Em termos práticos, cláusulas como essa punem o sócio que permanece, forçando a empresa a adquirir participações a preços desproporcionais, ou desvalorizam o ativo de quem deseja sair.
A não concorrência, embora prevista expressamente em diversas normas setoriais e aceita pela jurisprudência como válida quando razoável (desde que respeitados tempo e local — cf. STJ, REsp 1.170.620/SP), ainda é redigida de forma genérica na maioria dos acordos. O problema surge quando o escopo da vedação não acompanha a evolução do negócio.
Imagine uma empresa originalmente atuante no setor de logística rodoviária que, com o tempo, expande para soluções de transporte intermodal e softwares de rastreamento. Um sócio que se desliga com cláusula de não concorrência vinculada apenas ao “setor de transporte de cargas” pode, com segurança jurídica, abrir uma empresa de tecnologia voltada para o mesmo público-alvo. Ou, no cenário inverso, pode ser judicialmente impedido de atuar em ramos distantes apenas por sobreposição genérica no texto contratual.
Esse tipo de ambiguidade contratual é fonte crescente de litígios. O risco é duplo: cláusulas abertas demais podem ser invalidadas, e cláusulas mal delimitadas podem não proteger o negócio. Em ambos os casos, o custo recai sobre a empresa que achava estar juridicamente blindada.
Cláusulas que estabelecem valuation por múltiplos de receita, EBITDA ou fluxo de caixa descontado tornaram-se populares como forma de dar previsibilidade a saídas voluntárias ou obrigatórias. No entanto, a ausência de faixas mínimas e máximas, ou de critérios de neutralização de eventos atípicos, pode levar a distorções graves.
Empresas que sofreram prejuízo pontual por eventos não recorrentes — como rescisões trabalhistas em massa, inadimplência de um único cliente relevante ou efeitos fiscais retroativos — podem ter seu valor artificialmente reduzido no momento da apuração. O oposto também é verdadeiro: contratos pontuais podem inflar a projeção de receita e valorizar indevidamente a participação do sócio que deseja sair.
O ideal é que o acordo preveja um modelo híbrido, com faixas mínimas de múltiplo baseadas em médias de mercado e mecanismos de correção para eventos extraordinários. A ausência desses parâmetros transfere para o perito ou para o Judiciário uma decisão que deveria estar pacificada entre os próprios sócios.
A morte de um sócio não encerra a participação societária — transfere a titularidade das quotas ou ações para os herdeiros, conforme regra prevista no artigo 1.028 do Código Civil. Muitos acordos de sócios permanecem omissos sobre o que fazer nesse cenário, apostando que o contrato social ou a boa vontade da família resolverão a situação.
Na ausência de cláusula de exclusão ou obrigação de compra das quotas pelo grupo remanescente, a empresa pode ver sua administração comprometida por herdeiros não alinhados, não técnicos ou mesmo conflitantes entre si. Em setores com dependência da figura do fundador ou com alta personalização do atendimento, isso representa risco imediato à continuidade.
O mercado já reconhece como padrão mínimo de proteção a inclusão de cláusulas de opção de compra com prazo curto, condições pré-definidas e critérios de valuation automáticos. Ainda assim, acordos omissos continuam sendo celebrados todos os meses, por empresários que acreditam que “isso não vai acontecer comigo”.
A construção de um acordo de sócios robusto exige mais do que copiar boas cláusulas — exige compreender as assimetrias reais da sociedade, os ciclos de vida do negócio e os riscos futuros de convivência. O jurídico preventivo de hoje é o que garante a continuidade da operação no momento mais crítico: quando os interesses se separam, os números crescem ou o tempo dos fundadores se encerra.
A reforma tributária, o avanço da digitalização fiscal e o aumento da litigiosidade empresarial tornaram os acordos de sócios não apenas recomendáveis, mas essenciais. Em um país onde os tribunais ainda são lentos e a insegurança jurídica persiste, a clareza contratual é o principal ativo de uma empresa bem estruturada.